O som dos meus saltos altos, a baterem contra a pedra da calçada, faziam-se ouvir na serenidade daquela rua escura e londrina. Os meus braços permaneciam abraçados a mim mesma, numa estúpida tentativa de não encarar a óbvia solidão que me envolvia. Os meus pés doíam-me, como há muito tempo, não doíam. Sentia-os latejar. Olhei em meu redor, estava exactamente no caminho oposto aquele que me levaria para casa. Os meus ouvidos atraiçoaram-me, fazendo-me ouvir algo, parecido com uns passos a correrem atrás de mim.
- Rupert? – Chamei, virando-me para trás num impulso. Mas ninguém se encontrava lá, apenas um gato caminhando em passos vagarosos. Abanei a cabeça em reprovação. O meu cérebro sabia que eu nunca mais o iria ver, mas o meu coração insistia em acreditar que ele iria voltar para mim, com aquele sorriso amoroso nos lábios. Virei-me novamente, para o caminho que insistia em seguir, acabando por dar por mim num parque. Sentei-me num dos bancos castanhos que permanecia vazio e retirei os sapatos dos pés, permitindo-me sentar da maneira que pretendia. Aquele sítio fazia-me sentir particularmente bem. Talvez, completa…
*flashback*
- Erin… - Sentiu-o parar atrás de mim, e chamar o meu nome enquanto entrelaçava os seus dedos nos meus
- Sim? – Perguntei sorrindo-lhe abertamente. Ele olhava-me sorrindo. Rupert puxou-me para ele, pousando a sua mão livre na minha cintura, para me poder juntar ainda mais a ele. Quando o espaço entre nós se tornou nenhum - ou quase nenhum - ele tocou com os seus lábios nos meus lábios suavemente, fazendo todo o meu corpo se arrepiar. Pousei a minha mão no seu pescoço, tornando o beijo mais rápido, mas ainda assim, romântico. Quando nos afastámos, ele sorriu-me, e ambos nos sentámos num dos bancos de madeira do grande parque.
- Vem morar comigo…- Ham? – Perguntei, deixando a minha boca abrir-se um pouco, para mostrar a minha admiração, ele riu-se automaticamente.
- Vem morar comigo, Erin. – Repetiu
- Rupert… Não achas cedo demais?
- Não quero que seja tarde demais, quero-te comigo.- Eu estou contigo, sempre. – Sorri-lhe passando com a minha mão na sua face
- Eu amo-te…
- Eu também.
- Então vem morar comigo Erin. Vai correr tudo bem… Connosco. – Tentou assegurar-me, pousando a mão na minha coxa
- Achas mesmo?
- Tenho a certeza.
- Está bem… Eu vou morar contigo. – Ele levantou-se – e a mim – num ápice, elevando-me pela cintura, e fazendo-me rodar no ar, sempre com aquele sorriso genuíno nos lábios que nunca desaparecia.
*/flashback*
Uma brisa de ar frio levantou os meus cabelos fazendo a pele do meu pescoço arrepiar-se. Instintivamente, fechei os olhos e pousei a mão no meu pescoço. Outrora era ele a fazer-me arrepiar. Agora era só o vento. Calcei os sapatos, que ainda se encontravam no chão, seguindo caminho. Comecei a sentir dores agudas na testa e na zona abdominal. Aconcheguei-me mais ao meu cachecol felpudo, pois o frio começava também a fazer-se sentir. Após andar mais uns quarteirões, uma tontura apoderou-se de mim, fazendo-me apoiar a um carro que se encontrava estacionado. Levei a mão à minha testa e ao sentir os pontos, quase acabados de cozer, uma dor forte atacou o meu coração. Tudo caía em mim agora. Queria chorar mas nada saía pelos meus lábios - sem serem uns gemidos de dor. Queria respirar mas sentia a minha garganta a apertar cada vez mais. Sem aguentar mais, deixei-me cair no passeio. O meu corpo permaneceu encostado ao carro. Continuei a soluçar, enquanto me ia lembrando daquilo que o meu cérebro tentava ao máximo esconder.
*flashback*
- Já estás despachada? – Perguntou-me da sala
- Estou quase… - Respondi fazendo um risco fino e perfeito no olho com eyeliner preto e passando rapidamente o batom vermelho pelos meus delineados lábios. Guardei o batom dentro da mala e dirigi-me para a sala. Ele estava sentado a olhar para a televisão atentamente.
– Então… Como estou?
- Linda. Como sempre. – Disse-me, depois de se chegar perto de mim e me depositar um beijo nos lábios
- Agora estás vermelho… - Ri-me enquanto limpava com o dedo indicador os seus lábios.
– É demasiado para os anos do James?
- Claro que não. Se bem que tenho a certeza que vou ter de controlar o meu irmão. - Não sejas parvo! – Rimo-nos os dois, saindo logo de seguida de casa. Entrámos no carro, sendo que o Rupert ia a conduzir e eu no lugar do pendura. A casa dos pais do Rupert não ficava muito longe mas demorava ainda uma boa meia hora, já a contar com filas e sinais. Rupert arrancou com o carro, enquanto eu liguei o rádio. Mudei de estação e de estação, até encontrar aquela que queria.
- “And don’t you let me go, let me go tonight…” – Comecei a cantarolar, acompanhando a música e olhando para ele. Olhei para a frente. O sinal ficou vermelho.
– Rupert, está vermelho. – Disse, e quando virei o olhar para ele, vi outro carro embater no nosso. De seguida, deixei de ver, deixei de sentir. Apaguei por completo. Acordei deitada numa cama de hospital, não estava lá ninguém. Ele não estava lá. Senti uma repentina dor no peito, e uma vontade de chorar enorme, mesmo não sabendo porquê. Quando a enfermeira chegou, trazendo-me umas roupas para eu vestir, eu perguntei-lhe pelo Rupert e também o porquê de eu estar aqui. Ela não me respondeu, sussurrando apenas um ‘lamento’ quase inaudível e virando costas. Eu vesti-me rapidamente, calcei os meus saltos e vesti o meu casaco grande preto. Queria entender mas não conseguia entender nada. Uma senhora na recepção entregou-me o meu telemóvel, dizendo que a mãe do meu namorado tinha levado a minha mala. Saí do hospital apressadamente. Só queria chegar a casa e ver o Rupert. O táxi parou à porta da nossa casa e apercebi-me que não tinha chaves. Toquei à campainha mas ninguém respondeu. Toquei novamente… nada. Sentei-me num degrau, sem saber o que fazer. Acabei por me decidir e ligar á mãe do Rupert.
– Estou? – Ouvi uma voz abalada do outro lado.
– Boa noite. Sabe do Rupert? Telefonei-lhe e toquei á campainha, mas ninguém me atende. – Ouvi a mãe do Rupert fungar, e começar a falar
– Ham? Não. Isso não aconteceu. Ele está em casa. Está há minha espera.- Minha filha… O Rupert, já não está entre nós. Estiveste adormecida um dia, amanhã é o seu velório. – Ouvi-a dizer no meio de tanto choro.
– Amanhã o James vai-te buscar, para te trazer para a igreja. – Automaticamente desliguei a chamada. Aquilo não podia estar a acontecer. Eu não queria acreditar. Eu não acreditava. Comecei, então, a andar á deriva.
*/flashback*
Os primeiros raios de sol começaram finalmente a surgir. E eu permanecia no mesmo sítio, na mesma posição, desde que… Desde que me tinha lembrado. A culpa era minha. A culpa era toda minha. Se eu não me tivesse atrasado ele não iria ter pressa. Se eu não me tivesse atrasado ele não teria passado aquele sinal vermelho. Se eu não me tivesse atrasado ele estaria neste momento na nossa cama, abraçado a mim. Gordas lágrimas recomeçaram a correr na minha face magoada e dorida. Voltei a levantar-me, retirando os sapatos. Parecia maluca a andar descalça na rua. Mas era isso que eu me sentia: maluca. Quando cheguei à minha porta de casa, já lá estava o James sentado no carro, todo ele vestido de preto. Sem avisar entrei no lugar do pendura. Ele olhou-me mas não disse nada. E eu nada disse. Mesmo que quisesse não tinha forças para isso. Ele arrancou com o carro e ligou o rádio. A música começou a tocar. Era a mesma… A mesma, daquela noite. Agarrei-me aos meus joelhos e chorei baixinho. Nunca pensei que fosse possível um ser humano sentir tanta dor. Eu sentia que estava a morrer, ou, pior que isso.
- “I know you’re right behind me…” - Sussurrei por entre soluços. Senti uma mão pousar no meu ombro. Sabia quem era mas não queria olhar. Não queria ver, só queria acordar. De repente senti o carro parar. Não queria sair. Não queria enfrentar. Não conseguia enfrentar. Senti a porta do lado do James abrir, umas vozes sussurrarem e depois fechar-se novamente.
- Erin… - Ouvi uma voz conhecida chamar-me. Levantei os olhos, ainda que a medo
- Claire? – Disse num sussurro.
– Ele… Ele morreu, Claire. A culpa foi minha. Toda minha. – Comecei a bater fortemente com a mão na minha testa.
- Pára Erin. – Disse ela agarrando no meu pulso.
– A culpa não foi tua. A culpa não foi de ninguém.- Não, não. Tu não entendes. A culpa foi mesmo minha… - A voz falhou-me e recomecei a chorar compulsivamente. A Claire não disse mais nada, só me abraçou. Aquilo deveria fazer eu me sentir melhor mas não estava a resultar. Aquele vazio continuava dentro de mim. Aquele sentimento de culpa continuava dentro de mim. E como é que haveria de saber se alguma vez iria desaparecer? Entrei para a sala onde estava o caixão aberto, de braço dado com a Claire. Vi um corpo imóvel, com um pedaço de pano branco rendado a cobrir-lhe a face. Desviei os olhos para o chão. Senti a Claire largar-me e incentivar-me a avançar. Olhei em meu redor: a família dele estava lá toda. Sentados nas cadeiras nada cómodas, a chorarem agarrados uns aos outros. Se eles soubessem… Se eles soubessem que a culpa tinha sido minha. Funguei. Voltei o meu olhar para o caixão e avancei até lá. Retirei o pequeno pano que lhe cobria a face. Nunca tinha percebido o porquê de fazerem aquilo, era uma falta de respeito perante a pessoa. Ele tinha um dos seus melhores fatos vestidos, reparei nisso, pois tinha sido eu a comprar-lho. Passei a minha mão pela sua face cheia de hematomas bastante visíveis. As lágrimas voltaram a cair dos meus olhos. Acho que ainda tinha esperança que ele fosse despertar com o meu toque, mesmo sabendo que isso era impossível. Baixei-me e dei-lhe um beijo na testa.
- Rupert… Tu prometeste que não me ias deixar. Prometeste que ia ficar tudo bem. Que íamos ficar juntos para sempre. – Sussurrei, sentindo-me mais exposta que nunca. Voltei a passar a minha mão na sua face. –
Por favor, não me deixes. Eu… Nós precisamos de ti. – Disse pousando a mão na minha barriga ainda não sobressaída.